Profissionais da imprensa que atuarão na cobertura dos Jogos Olímpicos de Inverno Beijing 2022, no mês que vem, planejam descartar seus equipamentos eletrônicos assim que acabar a competição. A justificativa para o uso de telefones e computadores descartáveis é o receio com a vigilância estatal no país, que pode invadir dispositivos e infectá-los com software de rastreamento, permitindo que as autoridades locais vasculhem todo o conteúdo. As informações são do jornal Washington Post.
A atmosfera de desconfiança na edição deste ano tem como agravante as restrições mais rígidas da história dos jogos, estabelecidas pelos organizadores locais com o aval do COI (Comitê Olímpico Internacional). O início está marcado para o dia 4 de fevereiro, e o evento se estenderá por duas semanas.
As determinações, que de acordo com a China são pautadas em protocolos sanitários contra a Covid-19, estabelecem que repórteres, atletas e oficiais são obrigados a permanecerem dentro de uma “bolha protetora” durante o evento, nomeada “circuito fechado”. Uma vez inseridos nesse esquema de movimentação restrita, eles só podem transitar entre hotéis designados e locais oficiais por meio de carros, ônibus e linhas ferroviárias controladas pelo Comitê Olímpico chinês.
As questões que envolvem a cibersegurança têm relação com o uso de um aplicativo exigido pela organização. Os participantes deverão usá-lo para enviar diariamente informações pessoais sobre o estado de saúde, como temperatura ou eventuais sintomas de coronavírus. Os relatos devem ser iniciado 15 dias antes da viagem à China e continuarão durante as Jogos.
Tais informações serão acessadas majoritariamente por chineses, entre organizadores e autoridades, segundo consta no manual oficial do COI. “Os dados pessoais serão processados de acordo com as leis e regulamentos aplicáveis pelo comitê organizador de Beijing, o governo nacional chinês, autoridades locais e o COI”.
O Citizen Lab, grupo canadense de pesquisa de segurança cibernética, alertou nesta semana que detectou uma “falha devastadora” no aplicativo, que poderia expor informações médicas e de passaporte dos usuários. O app também teria um recurso que identifica palavras-chave, como “Xinjiang” – região autônoma em que os uigures, minoria perseguida que chamou a atenção de nações que promoveram boicote diplomático, habita predominantemente -, que pode ajudar as autoridades a identificar críticos.
É por isso que os dispositivos descartáveis surgem como uma alternativa sensata nas mãos dos jornalistas.
Histórias comprometidas
Com a vida dos repórteres altamente restrita em Beijing, o contato direto com cidadãos chineses ficará comprometido, já que a bolha não vai muito além dos espaços de trabalho e locais de hospedagem. Inclusive os espectadores dos eventos olímpicos estarão distantes dos repórteres.
“As restrições limitarão nossa capacidade de contar histórias que normalmente compartilhamos sobre a cidade-sede, a vida nos bairros e como os Jogos são percebidos pelas pessoas”, avaliou Roxanna Scott, editora-gerente de esportes do jornal USA Today, que enviará uma equipe de 25 pessoas para a China.
A nova realidade imposta impedirá reportagens impactantes como a feita durante as Olimpíadas de 2008, quando jornalistas ocidentais relataram a situação de moradores de um bairro de Beijing que foi arrasado para construir arenas olímpicas . “Esse tipo de história será difícil quando estivermos limitados aos hotéis e locais oficiais”, analisou o vice-editor de esportes do jornal Washington Post, Matt Rennie, coordenador da cobertura olímpica do veículo.
Por que isso importa?
A desconfiança global que recai sobre a China no que tange à vigilância tecnológica tem como protagonista a Huawei, empresa de telecomunicações suspeita de atuar a serviço de Beijing. A desconfiança aumentou nos últimos meses devido à construção das redes 5G em todo o mundo, sendo a companhia chinesa a principal fornecedora global de infraestrutura do gênero.
A Huawei foi proibida de fornecer infraestrutura nas redes 5G de diversos países, justamente pelo temor de que seja usada para espionar os governos locais a favor da China. Austrália, Nova Zelândia, Portugal, Índia, Estados Unidos e Reino Unido já baniram a fabricante em suas futuras redes
Informações obtidas pelo jornal The Washington Post sugerem que a ligação da Huawei com o aparato de vigilância governamental chinês é maior do que se imaginava. Os dados aparecem em uma apresentação de Power Point que estava disponível no site da empresa e foi removida.
Repleto de itens “confidenciais”, o arquivo obtido pelo periódico mostra como a tecnologia da empresa pode ajudar Beijing a identificar indivíduos por voz, monitorar pessoas de interesse, gerenciar reeducação ideológica, organizar cronogramas de trabalho para prisioneiros e rastrear compradores através do reconhecimento facial.
De um lado, a Huawei nega atuar a serviço do Estado, mas admite que não tem como controlar a forma como sua tecnologia é usada pelos clientes. Do outro, as autoridades enxergam uma aproximação cada vez maior entre a Huawei e Beijing e citam a Lei de Inteligência Nacional da China, de 2017, segundo a qual as empresas nacionais devem “apoiar, cooperar e colaborar no trabalho de inteligência nacional”, o que poderia forçar a gigante da tecnologia a trabalhar a serviço do Partido Comunista Chinês (PCC).
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