A primeira semana da COP-26, em Glasgow, na Escócia, foi marcada por um comunicado inédito: no dia 1º de novembro, os governos do Reino Unido, EUA, Alemanha, Noruega e Países Baixos, junto a dezessete entidades filantrópicas, anunciaram que doarão US$ 1,7 bilhão – quase R$ 10 bilhões no câmbio atual – para que povos indígenas e comunidades locais protejam seus territórios e ajudem a combater as mudanças climáticas.
O gesto inédito é apenas um dos episódios que colocaram as populações nativas em lugar de destaque no início da conferência do clima mais importante dos últimos anos. Dias depois, o príncipe Charles, do Reino Unido, recebeu um grupo de indígenas de diferentes lugares do mundo. Entre eles, estava a brasileira Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que trouxe a esta COP a maior comitiva de sua história, com mais de 40 representantes.
O protagonismo foi além dos encontros e salas oficiais. Os indígenas estiveram na linha de frente dos dois atos por justiça climática que tomaram as ruas da cidade escocesa na sexta-feira (5) e no sábado (6). Entre eles, lideranças brasileiras como Guajajara, Célia Xakriabá e as jovens Samela Sateré Mawé e Juma Xipaia, também integrantes da delegação da Apib. Além disso, entre os eventos paralelos à COP, organizados pela sociedade civil, há um sem fim de mesas e debates em que os povos nativos são as figuras centrais.
A análise de que a relevância e alcance das vozes indígenas vêm crescendo nas últimas conferências do clima, até chegar a patamar inédito em Glasgow, foi confirmada por lideranças ouvidas pela Agência Pública durante a última semana.
“Das COPs de que participei, essa é totalmente diferente, nunca tive tanta agenda na minha vida como tive aqui”, contou Sineia do Vale, do povo Wapichana, coordenadora do Departamento Ambiental do Conselho Indígena de Roraima (CIR) há duas décadas. Vale, que discursou na Cúpula de Líderes sobre o Clima promovida pelo governo dos EUA em abril e atua em negociações internacionais sobre o tema há pelo menos dez anos, está em sua quarta conferência. “Tem sido uma COP diferente, onde os povos indígenas tiveram espaço, foram ouvidos e realmente conseguiram trazer suas estratégias”, disse.
Ex-relatora especial da ONU sobre Direitos Indígenas, a filipina Victoria Tauli-Corpuz frequenta as COPs desde sua primeira edição, no Rio de Janeiro, em 1992, quando a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês) foi assinada.
Ela prefere aguardar o fim das negociações para qualificar esta como “a COP indígena” – e afirma que só o fará se as demandas desses grupos forem atendidas em pontos importantes –, mas destaca que as populações nativas vieram paulatinamente construindo sua participação não apenas nos ambientes de articulação da sociedade civil, mas dentro da própria estrutura da Convenção. “É um resultado da crescente força do movimento global dos povos indígenas”, explica. “Envolve organização, tomada de consciência, pesquisa e treinamento em habilidades de advocacy. É um pacote de mobilização.”
Ainda de acordo com Tauli-Corpuz, a coordenação entre povos de diferentes lugares do mundo e o apoio de atores externos, como a academia, fizeram com que o papel indígena no enfrentamento às mudanças climáticas ganhasse relevância.
Já é um consenso científico, por exemplo, que terras indígenas funcionam como barreiras contra o desmatamento, o que é essencial para evitar emissões de CO2, já que as árvores, quando cortadas, liberam o gás de efeito estufa (GEE) na atmosfera. Relatório da própria ONU lançado em março, produzido a partir da revisão de mais de 300 estudos, indica que entre 2000 e 2012 as taxas de desmatamento na Amazônia do Brasil, Bolívia e Colômbia foram no mínimo duas vezes inferiores dentro de TIs demarcadas se comparadas às áreas ao redor. O desmatamento é, inclusive, um dos principais obstáculos para que o Brasil cumpra a sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), que estabelece como meta a redução de 50% das emissões de GEE até 2030 e a neutralidade de carbono até 2050.
Como consequência, vieram conquistas inéditas, como a criação de um espaço na UNFCCC voltado especificamente a discutir e reconhecer a importância dos povos indígenas na arena internacional do clima.
Um espaço indígena na UNFCCC
Apenas longos 25 anos após a assinatura da Convenção, durante a COP23, realizada em 2017 na cidade de Bonn, na Alemanha, foi instituída a Plataforma das Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP, na sigla em inglês), com três grandes eixos de atuação: conhecimento tradicional, capacidade de engajamento no processo da UNFCCC e políticas e ações sobre mudanças climáticas. Ela funciona a partir de um grupo de trabalho facilitador formado por 14 representantes eleitos, metade indígenas e metade dos Estados (países) – ou “partes”, como se diz na linguagem técnica –, e agora discute seu segundo plano de trabalho, já que o primeiro se encerra neste ano.
“É uma plataforma para trocar boas práticas voltadas à mitigação e adaptação às mudanças climáticas de uma maneira holística, com base nos conhecimentos e práticas dos povos indígenas”, ressalta Andrea Carmen, do povo Yaqui, dos EUA, e representante das populações da América do Norte na LCIPP. Ela lembra que sua implementação só foi possível porque o preâmbulo do Acordo de Paris determina que as partes devem “respeitar, promover e considerar suas respectivas obrigações” em relação aos direitos dos povos nativos e comunidades locais ao adotar medidas para enfrentar a crise do clima. “Foram negociações muito difíceis em Paris” para que a redação do parágrafo incluísse esses termos, recorda.
Carmen destaca também a existência do Caucus, um espaço de reunião entre indígenas que participam das COPs, criado em 2008, e que há algumas edições passou a ser diário – em Glasgow, os encontros acontecem às 9h da manhã na Blue Zone, a área da conferência onde ocorrem as negociações entre países. É um importante ambiente de articulação dos representantes indígenas, que ali deliberam sobre posicionamentos gerais, estratégias de atuação e agendas. Delegados dos Estados e agências da ONU são convidados a participar das discussões. “A plataforma e o Caucus foram instrumentais para alavancar a participação dos povos indígenas ao fazer os Estados e a UNFCCC reconhecerem que precisam nos ouvir em seu processo”, aponta.
Mas nada disso veio fácil: é resultado de um longo processo de incidência dos povos indígenas na Convenção. “Nunca disseram: vamos abrir a porta e esse espaço é de vocês”, afirma Sineia do Vale. “A gente sempre está falando: somos importantes para essa discussão, além dos chefes dos países também precisamos ser ouvidos como lideranças que realmente vivenciam cada momento dentro das florestas. Não tem uma floresta em pé sem que dentro haja alguém com seus conhecimentos fazendo manejo.”
A veterana das negociações climáticas Tauli-Corpuz considera importante o fato de os povos indígenas terem conquistado um espaço oficial dentro da Convenção, mas assinala que ele deve ser fortalecido. “Precisa de mais apoio. O orçamento direcionado a ele ainda é baixo, e os mandatos [dos representantes], limitados”, indica. O equatoriano Tuntiak Katan, representante das populações nativas da América Latina na plataforma, também tem ressalvas. “Ela não pode apenas incluir indígenas diplomáticos que estão a par da linguagem das Nações Unidas, é necessário haver a verdadeira posição dos povos indígenas, que estão nos territórios”, aponta.
Para isso, Katan deseja criar um plano de trabalho específico para a região, com plataformas menores e locais que possam chegar nas pontas. “O que pretendemos é que se escute a voz das pessoas que não estão nesses sistemas internacionais”, afirma. Do povo Shuar, ele é uma das lideranças da Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) e coodenador-geral da Aliança Global de Comunidades Territoriais (GATC) – organização que representa povos da floresta em 24 países e receberá parte dos quase R$ 10 bilhões a serem doados por governos e instituições de filantropia.
“Não podemos ser os últimos da fila”
Uma das demandas da GATC e de todo o movimento indígena na COP26 é o acesso direto a fundos climáticos. O problema não é a falta de dinheiro, explicam as lideranças entrevistadas pela Pública, mas o fato de que os recursos são distribuídos sem levar em conta seus costumes e modos de organização, o que dificulta que efetivamente alcancem as comunidades que deles precisam para seguir preservando as florestas.
De acordo com a UNFCCC, os povos indígenas são guardiões de quase 80% da biodiversidade do planeta, mas entre 2011 e 2020 receberam financiamento climático de cerca de US$ 270 milhões por ano, quantia equivalente a menos de 1% do que é destinado pela OCDE à mitigação e adaptação às mudanças climáticas a todos os países em desenvolvimento, aponta estudo da Rainforest Foundation da Noruega publicado em abril.
Ainda segundo a pesquisa, desse valor, apenas US$ 43,3 milhões chegaram às mãos de organizações indígenas e comunidades locais por ano – o resto acabou retido por intermediários ou foi direcionado a outras ações dentro de projetos maiores.
Diante desse cenário, ao serem anunciadas as novas doações em Glasgow, grupos indígenas manifestaram preocupação por não terem sido ouvidos no processo de construção dos fundos.
Após a assinatura de acordo que prevê a destinação de US$ 19,2 bilhões para a proteção de florestas – o chamado Forest Deal – por representantes de mais de cem países durante a Cúpula dos Líderes Mundiais no início da última semana, com o reconhecimento do papel dos povos indígenas para a questão, a própria GATC divulgou nota pública afirmando que a medida é uma “boa notícia”, mas que não poderia recebê-la com entusiasmo por não ter sido “incluída no desenho deste compromisso”. “Suspeitamos que muitos desses recursos serão distribuídos por meio de mecanismos tradicionais de financiamento climático, que têm demonstrado grandes limitações para atingir nossos territórios e apoiar nossas iniciativas”, diz o texto.
“Os mecanismos atuais não são construídos para os povos indígenas e para as pessoas, são construídos pelos e para os governos. Existe um sistema que algumas vezes exige o cumprimento das demandas dos doadores e que se faz muito burocrático”, explica Tuntiak Katan. “O que estamos dizendo é: se quiserem realmente trabalhar na mitigação das mudanças climáticas, trabalhem conosco, fortaleçam nossas instituições. Não somos desorganizados, temos uma estrutura que abrange toda a Amazônia, todo o setor de trópicos.”
Além de maior participação no desenho de iniciativas externas de financiamento climático, Sineia do Vale aposta na criação de fundos geridos pelos próprios povos indígenas, que sabem melhor que ninguém como atender às suas necessidades. No Brasil, já há um exemplo desses em funcionamento: o Fundo Poodali, idealizado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e apoiado por doadores como a Fundação Ford e a Conservação Internacional. “Os fundos indígenas são a melhor solução de implementação de ações para as comunidades e organizações indígenas”, defende. “Não podemos ser os últimos da fila, nem pegar o último pedaço do bolo.”
source https://apublica.org/2021/11/das-ruas-aos-espacos-oficiais-indigenas-conquistam-protagonismo-inedito-na-cop-26/
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