Este conteúdo foi publicado originalmente na revista Mundorama, ligada à UnB (Universidade de Brasília)
por Douglas H. Novelli, doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)
A superação de conflitos e a construção da paz estão entre os principais processos estruturantes da política internacional contemporânea e, certamente, estão entre os mais complexos. O artigo “Interventionary order and its methodologies: the relationship between peace and intervention”, de Oliver Richmond (2019), é um trabalho recente advindo da literatura que trata das problemáticas em questão.
Nele, o autor argumenta a favor da necessidade de examinar como intervenções internacionais são usualmente apresentadas como um meio de dar suporte a um “equilíbrio natural” do sistema internacional por meio do uso da força, o que inclui apoiar um conjunto específico de interesses, normas e unidades territoriais sob os guarda-chuvas da governança global e da hegemonia ocidental.
Nas palavras do autor, “frequentemente, uma situação ‘longe do equilíbrio’ é aplicada em um contexto de deficiências conjunturais, culturais, sociais e históricas, mantendo sistemas políticos injustos” (RICHMOND, 2019, p. 2, tradução nossa).
Partindo disso, Richmond analisa as mentalidades políticas através das quais são criados os frameworks de trabalho para essas intervenções, os quais dão luz a determinados aspectos e formas de lidar com as questões da segurança internacional e construção e manutenção da paz, ao passo que, simultaneamente, excluem e retiram da possibilidade do plausível outras formas de abordar essas questões. Identifica, assim, três “ordens intervencionistas” na história recente, com uma surgindo da outra em função do crescimento de uma praxis intervencionista específica, produzindo novas metodologias de trabalho voltadas para os desafios empíricos encontrados (RICHMOND, 2019, p. 2).
As metodologias intervencionistas
De modo resumido, três metodologias são identificadas por Richmond (2019): o nacionalismo metodológico; o liberalismo metodológico; e o ‘cotidianismo’ (“everydayism”, no original em inglês). A primeira destas, o nacionalismo metodológico, “privilegiava a produção estatal de conhecimento sobre a ordem doméstica, sobre outras sociedades e sobre as práticas de intervenção” (RICHMOND, 2019, p. 3, tradução nossa).
Essa abordagem vê a intervenção como uma exceção da norma internacional, concebida para manter a ordem hegemônica e a soberania no sistema de Estados. Nesse sentido, “o nacionalismo metodológico priorizava o interesse nacional e conectava a produção de conhecimento e quadros de intervenção para manter e estabilizar uma ordem territorialmente soberana” (RICHMOND, 2019, p. 4, tradução nossa), oferecendo assim uma lógica de paz negativa, tendo em vista a manutenção das desigualdades e instabilidades das relações de poder promovidas por essas práticas intervencionistas.
O fracasso do nacionalismo metodológico em promover a paz e a ordem no sistema internacional levou a produção do liberalismo metodológico, segunda metodologia identificada por Richmond (2019, p. 3), orientada diretamente para tentar produzir uma arquitetura do sistema internacional baseada na democratização e nos direitos humanos.
Nas palavras do autor, a paz, a partir de uma perspectiva liberal, parece envolver atores internacionais e locais que direcionam suas energias combinadas para o Estado, minimizando as intervenções para somente quando forem essenciais para manter o sistema e defender os direitos humanos (RICHMOND, 2019, p. 4, tradução nossa).
Dentro do liberalismo metodológico a produção do conhecimento foi aprimorada, produzindo práticasintervencionistas cada vez mais refinadas e sutis para dar suporte a estabilização de conflitos e avançar a ordem neoliberal, mas sem alterar a hierarquia política existente. Intervenções tornaram-se assim “uma prática de governamentalidade disfarçada”, através da qual atores externos usam de “uma ética subjacente de paz liberal” para legitimar seus próprios projetos de paz, segurança e desenvolvimento (RICHMOND, 2019, p. 6, tradução nossa).
Consequentemente, o que se viu foi o enfraquecimento das autoridades políticas locais, as quais, independentemente de sua legitimidade, detinham algum conhecimento prático sobre a realidade que governavam, sendo substituídas por “racionalidades liberais ou neoliberais, apoiadas por ferramentas e poderes externos” (RICHMOND, 2019, p. 6, tradução nossa).
Embora tanto o nacionalismo quanto o liberalismo metodológico demandem um certo nível de engajamento com o cotidiano das pessoas submissas à intervenção, esse engajamento é a fim de proteger os interesses nacionais dos Estados interventores, projetar um ideal de defesa dos direitos humanos e manter sua legitimidade e autoridade política sobre os governados.
Em termos práticos, isso significa que a contribuição das ações guiadas por essas metodologias para a construção da paz, da justiça e da ordem é, necessariamente, limitada aos interesses dominantes no sistema internacional, não desenvolvendo esforços para criar um “engajamento responsivo” com os subjugados na medida em que interage com suas vidas cotidianas (RICHMOND, 2019, p. 7). É precisamente nesse sentido que as abordagens críticas para a paz visam oferecer suas contribuições.
Segundo Richmond (2019, p. 3), o conceito de “sociedade civil” oferece um ponto de partida para o ‘cotidianismo’ metodológico. Nas palavras do autor, seu papel pode ser resumido como o de “mediar interesses emancipatórios dentro do Estado, colocando o conhecimento local e a arquitetura internacional em uma relação coproduzida e intervencionista, focada na estabilização e melhoria do Estado através do quadro de paz liberal” (RICHMOND, 2019, p. 7, tradução nossa).
Pode ser visto, portanto, como uma síntese do liberalismo metodológico junto de suas principais críticas, tal qual o liberalismo parece ser uma síntese do nacionalismo metodológico e de suas críticas, com um framework nascendo graças ao aparente fracasso daquele que o antecede. Nesse sentido, é importante notar que as considerações principais sobre o cotidianismo — resumidamente, que as práticas cotidianas devem ajudar a moldar a intervenção a qual serão submissas — não contradizem a normativa liberal, especialmente no que toca a defesa dos direitos humanos e da democracia, mas ainda estão suficientemente fora das narrativas dominantes de construção da paz para, com frequência, serem silenciadas (RICHMOND, 2019, p. 8).
Richmond (2019) apresenta uma análise rica e profunda da evolução das mentalidades que guiaram as práticas intervencionistas internacionais nas últimas décadas. Sua tese parte de uma abordagem fundamentalmente histórica e dialética, observando como uma metodologia intervencionista evoluiu da anterior quando esta foi confrontada com críticas e com uma nova realidade percebida no sistema internacional. Isso de forma alguma significa que a síntese superou a tese, tendo em vista que o cotidianismo, o liberalismo e, em menor escala, o nacionalismo continuam a atuar como lógicas concorrentes nas intervenções internacionais contemporâneas.
Seu trabalho, contudo, não é livre de críticas. Apesar da qualidade geral de sua análise, o autor parece dar pouca atenção a um ponto-chave do cotidianismo enquanto prática: a ideia de atuar junto ao cotidiano das pessoas não necessariamente representa esforços para alterar suas realidades, pois, como aponta Duffield (2019), estes projetos não parecem tencionar uma superação da precariedade social, mas sim uma mera gestão desta.
Isto posto, partindo do pressuposto que as metodologias intervencionistas se desenvolvem precisamente a partir da análise crítica das deficiências daquelas que as precedem, pensar os próprios aspectos nocivos do cotidianismo metodológico é um processo fundamental na busca por um framework mais justo e inclusivo para os processos de construção e manutenção da paz.
Referências
Duffield, Mark. 2019. “Post-Humanitarianism : Governing Precarity through Adaptive Design.” Journal of Humanitarian Affairs 1 (1): 15–27. https://doi.org/10.7227/JHA.003.
Richmond, Oliver P. 2019. “Interventionary Order and Its Methodologies: The Relationship between Peace and Intervention.” Third World Quarterly 1 (1): 1–21. https://doi.org/10.1080/01436597.2019.1637729.
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